O deus Eu

                   Após mais um extenuante dia de trabalho, o já senhor sapateiro chegara ao seu limite.Tudo estava dando tão errado na sua vida...tinha rezado, ido a todo tipo de culto...e nada!Sua vida continuava no fundo do poço.Já estava cansado de sua mulher que julgava ser apenas mais uma prostituta, pois de onde vinha todo aquele dinheiro extra?Seu único filho visivelmente sofria de um distúrbio mental pois só gostava de meninos.Por que?perguntava todo o dia ao céu e nada recebia.Era um sapateiro frustado que ganhava a vida de um jeito tão miserável...
                   Depois de inúmeras sucessivas frustações jogou pragas ao céu e decidiu esquecer qualquer tipo de religião.
                   O tempo passava agora devagar até que em um período começou a chover por meses de uma maneira intensa.Era milagre, diziam.Está  evitando guerras, a fome e a morte! Até mesmo o céu retribuia numa bela manhã ao mostrar um belo arco-íris que parecia acompanhar três cavaleiros, sendo o líder um homem ao que tudo indica todo de branco com uma coroa e uma máscara.Seu cavalo era todo branco.
                   -Deve ser o rei de algum reino distante que nos trouxe bênção ao caos vivido-pensou o sapateiro-Espero que ele me ilumine de alguma forma...-pensava cheio de esperança.
                   Os outros dois cavaleiros: um de armadura vermelha e outro com uma manta preta vinham em seus cavalos da mesma cor respectivas.Aquele com uma espada cheia de sangue ao que tudo indica e este com uma balança.
                   -Este deve ser ou um banqueiro ou um juiz-pensa intimidado pelo tamanho da espada.
                   Notou também que o de branco levava consigo um cachorro negro que parecia sofrer de algum distúrbio sério pois saía de sua boca espuma.Apesar disso o ser de branco parecia tranquilo, pelo menos era isso que aparentava mesmo que o sapateiro não visse a sua cara oculta pela máscara.
                   -Com licença, caro sapateiro, o senhor poderia nos informar onde fica o reino de Israel?
                   -Israel?-depois de uma longa pausa disse- nunca ouvi falar desse reino...
                   Depois de um breve silêncio o cavaleiro respondeu:
                   -Ah sim!-e riu- me desculpe...é Jerusalém o que procuro.
                   -Ah sim -e riu também, só que nervosamente- é só seguir nessa direção- e apontou.
                   -Muitíssimo obrigado-e balançou a cabeça como que agradendo sendo seguido dos outros dois.
                   Ao partirem o sapateiro falou, meio que sem pensar primeiro:
                   -Desculpem-me-ficou meio que sem jeito-mas como o senhor sabe que sou sapateiro?
                   -Vejo que tem muito ódio em seus olhos- ignorou o líder- já pensou em fundar uma religião?Pois é o que pretendo fazer no futuro.E ele será o deus- e apontou ao cachorro, rindo em seguida.
                   Ao ver que o senhor estava assustado apenas disse:
                   -Brincadeira...apenas acho que religião cada um tem que respeitar a de cada um.
                   -Assim que vamos unir a todos-disse uma voz disforme do ser de preto.
                   -Quieto!-saiu uma voz temerosa de dentro da máscara.
                   Afinal, quem era aquele ser? pensou e nisso ficou.
                   -E caso não aceitem iremos guerrear- e riu balançando a espada ensaguentada.Parecia ser bobo esse cavaleiro todo de vermelho.
                   De onde vinha aquele sangue?Será possível que mataram alguém por diversão?
                   -Cala a boca!Sua peste dos infernos- berrou de novo a temerosa voz que gelou a espinha do sapateiro.
                   -Eu criarei a minha própria religião!-disse em seguida para distrair a atenção-Pode deixar.Vejo que você iluminou a minha mente!
                   -Agradeço a sua iniciativa- mudou de voz repentinamente o ser da máscara-Bem, temos que ir.Temos um compromisso e estamos atrasado para o espetáculo.Adeus.
                   E nisso partiram galopando em seus velozes cavalos.O senhor pegou um pano cheio de tinta que estava em seu bolso e mesmo assim limpou a sua suada testa fria.Que medo!pensava.
                   Não conseguiu dormir bem aquela noite até que colocou na cabeça que seria bem melhor ser o seu próprio Deus.Depois disso, não teve mais pesadelos e a voz que o atormentava em sua cabeça sumiu.Dormiu bem.
                   Resolveu então Ele aceitar tudo de uma maneira bem diferente como levara a vida anteriormente da iluminação...agora tinha plenos poderes sobre o seu futuro!
                   Com o seu olhar Ele enfeitiçava homens e muheres.Pouco se importava, pois só queria ter admiradores para espalhar a sua religião como vírus.Queria algum desafio.Tudo de repente se tornou tão fácil...
                   O dia estava como de costume: quente e seco.Afinal, a cidade foi erguida no meio de um deserto.Resolveu então dar um descanso para si após um extenuante início de dia de trabalho, afinal não só porque é Deus que não pode descansar?E foi tomar um pouco de ar fresco e ver a sociedade.
                   Porém, aquele dia estava muito tumultuado.Soube que condenaram um homem por pregar uma nova religião.
                   -Estúpido-pensou-Será que ele não percebe que só Eu sou o Deus de tudo?
                   Percebeu que pensara alto demais.Alguns traunsentes olharam assustados e uns ficaram até com raiva.
                   -Deixa ele-disseram uns-Vamos descontar no condenado.
                   -Mas o condenado é o que nos irá salvar-outros disseram.
                   -Pobres mortais-Ele disse- viverei uma eternidade a mais que vocês graças à minha religião- e saiu enquanto um tumulto se iniciava.
                   Parou num poço para se admirar.
                   -Como sou belo- pensou e seu reflexo ouviu o que disse.
                   E ficou muito tempo se admirando repetindo as mesmas frases enquanto se alisava e a seu reflexo.
                   -Como sou be...
                   -Senhor!Senhor!-disse um homem magro.Estava todo açoitado-Poderia me encher uma caneca de água e me dar um gole para saciar a minha sede?
                   -Saia da minha frente, maldito escravo!-disse nervoso ao ter sua autoapreciação quebrada.Só agora percebia a caneca que estava sobre as pedras que formavam o poço.
                   -Ele é o Senhor!Filho de Deus!-diziam alguns-Dê-lhe um pouco de água, bastardo!
                   -Se és mesmo Filho de Deus, faça com que jorre uma fonte de água fresca do chão- disse então como que lançando um desafio.
                   A multidão olhava agora para o homem esperando dele alguma ação.O homem estava muito cansado.Não bastava a cruz que carregava e os chicotes que recebia e penetravam a sua carne...tinha ainda que fazer aquilo?
                   -Dê-me um gole de água que farei o que pedes-replicou com uma voz rouca que causava comoção a todos.Menos ao sapateiro.
                   -Hahaha!És um inútil mesmo.Tirem-no da minha frente.Não quero ter o desprazer de sujar a minha visão- gritou aos soldados cm chicotes que obedeceram rapidamente.
                   Graças a sua religião o sapateiro agora era rico, tinha várias mulheres e incontáveis filhos; apesar de amar apenas a si próprio e o seu reflexo.Ignorava sua família dando-lhes apenas um teto e comida.Nem parecia que eram da mesma família.Agora era respeitado.Diziam que tinha matado sua primeira esposa e seu primeiro filho.Ninguém sabia se era verdade.
                   Ao ser levado o pobre homem disse:
                   -Se é assim, saiba então senhor sapateiro que sua maldição será a de caminhar para todo o sempre até- e foi levado às chicotadas.Não conseguiu completar a frase.
                   -Inútil...-dizia a si mesmo enquanto admirava-se pelo seu reflexo tão perfeito.
                   Mal sabia Ele,  agora Aasvero e depois conhecido como o judeu errante que iria vagar eternamente tendo como castigo nunca morrer...
                   Depois de um tempo, não sabia determinar sua admiração foi interrompida por um barulho estrondoso vindo dos céus seguida de uma escuridão que chorava...

                   Estava deprimido.Estava cansado de tanto viver.Tivera mais uma infinidade de mulheres, filhos e seguidores que o tinham como o Messias.O que mais desejava era morrer.Todos que conhecia morriam.Todos menos ele próprio...
                   Passado mais de mil anos, não sabia ao certo quanto tempo, apesar de ver e em seguida duvidar da data que consultava pelos incontáveis calendários, agora destituíra de sua identidade ao decidir se tornar um médico.Fora assassino de aluguel, soldado de vários países uns vencedores e outros não, advogado, lutador, engenheiro, músico, psicólogo, diplomata, escritor, juiz, nutricionista...e tantas outras que nem mais se lembrava...além de um fértil reprodutor.Filhos, netos, bisnetos...todos mortos e esquecidos.Agora médico, algo que sempre seu pai valorizava, por ter sido salvo por um em uma guerra.Nossa!Ele tinha um pai!Nem se lembrava mais de seu nome e face.
                   Tinha feito cirurgias também.Era outro ser completamente diferente.Ria dos cultos religiosos.Ria das pessoas.Ria de tudo porém estava triste por dentro.Ainda não era amado por si mesmo.Ainda sonhava com o dia que seria correspondido pelo seu antigo reflexo já impossível de ser lembrado.
                   Como o tempo passara rápido.Testemunhara inúmeras guerras e revoluções...para depois de tanto banho de sangue tudo voltar a mesma tranquilidade perturbada.
                   Um dia ao entrar no elevador do hospital viu um vulto.Devia ser sintoma do mal que sofria somado a festas que passava nas madrugadas totalmente bêbado.Na noite anterior devia ter ido a algum show e provavelmente ficara de frente as caixas de som, pois seu ouvido zunia continuamente.O vulto se revelou uma bela mulher.
                   Estava perdidamente apaixonado!Sentia o mesmo sentimento que sentiu ao ver a sua primeira mulher séculos ou milênios atrás.Ela e outros eram apenas pó levados pelo vento.Seu canal lacrimal insistia em derramar sangue.Maldito dia da sexta-feira da paixão em que chorara sangue pela primeira vez!
                   No meio tempo do elevador subindo, conquistou-a e beijou-a.Após as portas se abrirem disse olhando-a nos olhos:
                   -Você é a cura da minha doença que nunca me mata.
                   Não havia notado que ela estava com uma roupa meio azulada e esverdeada.Devia trabalhar no necrotério.O médico e a legista.Par perfeito!O imortal e a mortal.
                   Ela retribuiu:
                   -Venha viver comigo.Também digo o mesmo de você.
                   Mesmo pressentindo quem ela era, pois o numero quatro lhe via à cabeça pouco se importava.Afinal, se estava vivo sem amar verdadeiramente e apenas ódo e rancor no coração sentia por amar apenas a si mesmo porque não amar mesmo quando morto?Era o que ele já se sentia.Suas personagens que escreveram livros e pintaram quadros uns famosos e outros não diziam o mesmo.De qualquer forma o ex-médico agora confiante de mãos dadas com a desconhecida conhecida mulher caminhavam para o desconhecido.
                   Sabe-se apenas que depois de se amarem, a Morte virou uma doença viral que se espalhou pelo mundo após sucessivas crises globais.Era peste, guerra, fome...morte!O sétimo selo foi aberto.Eles devem ter tido vários filhos: uns mais vivos do que mortos e outros mais mortos do que vivos.
                   Caberá o Amor cultivar o trigo do pão de cada dia até o dia em que a Morte ceifar a colheita separando o joio do trigo.