A Metrópole

                     O sonho de um dia melhor vem levemente trazido pelo úmido vento silencioso da noite que invade rostos e desejos...calando a todos um a um...
                     Deus, como era bom ainda estar vivo!Ter mais um dia de vida!A vida sempre fora um lugar difícil para ser conquistado mas não é por isso que devemos abaixar a cabeça e encarar a dura realidade...assim pensava o sem lar que acordou com o que parecia ser um pontapé em seus braços.Provavelmente não o viram dormindo enrolado sob um pano todo sujo de lama e fétido.Talvez pensaram que era lixo.Talvez...mas nesse mundo, quem sujaria seus engraxados sapatos com algo tão sujo quanto ele?
                     Já era meio dia.Os restaurantes estavam cheios e aqueles aromas tão atraentes o levavam a comer com os olhos as apetitosas comidas saboreadas por respeitáveis homens de terno.A bebida o estava destruindo.De qualquer forma as garrafas agora estavam vazias.
                     Ao se lavantar percebeu que sua mulher não estava mais ao seu lado.Onde estaria?Seu coração disparou ao sentir em seu tórax um corpo esquelético frio preso como um inseto a sua pele.Era ela!E como estava diferente!Só agora percebia como ela estava diferente sob sua crescente barba que parecia não ter fim.Seu cérebro devia estar todo cheio de buracos pois por mais que tentasse se recordar dela antes de sucumbir ao mundo das drogas nada aparecia em sua mente.
                     De suas bocas inchadas saiam apenas palavras pouco ouvidas:
                     -Mãe, mãe...perdão...noite fria, mãe...frio...
                     Como assim, pensava.Ambos não conheceram seus pais.Ambos eram órfãos de uma sociedade estéril.
                     Só tinham um ao outro como companhia para se segurarem nos maiores apertos da vida possíveis.
                     Irritado pelo habitual barulho histérico dos que por entre eles passavam, de súbito arrancou sua mulher de seu tórax pelos ombros que ainda balbuciava palavras cada vez menos audíveis e gritou acordando-a mais pelo bafo paralisnte alcóolico que pela voz rouca:
                     -Acorda mulher!Perdemos mais um dia.
                     Andando ignorados na multidão que não se identifica, um homem sem destino com uma mulher presa à sua mão avançam sem rumo.Haviam tentado de tudo: ele tentara ser negociante ambulante, arranjar algum emprego honesto digno de se viver, ser engraxate e até tentara ser motorista desses caminhões de lixo.Já estava habituado com aquele cheiro.Agora via que ele era o lixo a ser levado.Tudo bem que não sabia dirigir, mas isso não era problema porque para tudo na vida existia uma saída.
                     Já sua mulher chegara ao limite de ter de se prostituir para conseguir algum dinheiro para conseguir ter o que comer...mas seu companheiro gastara grande parte da quantia em bebidas e com o pouco que restou ela decidiu entrar no mundo das drogas e sua vida ganhou então em novo sentido.O vazio virara o cheio até se esgotar...
                     -Para onde vamos?-perguntava ela com medo de já saber a resposta.
                     -Não sei...
                     Acabaram conduzidos a um beco sem saída.Parecia ser esses locais em que se depositam tudo que não tem mais serventia e só não dão por puro egoísmo próprio do ser humano.Tinha um cheiro distante de comida chinesa mas ao se aproximarem toda aquela mistura recordava ligeiramente comidas de fast-food somado ao barulho de pombos e moscas que com eles competiam.
                     -Nossa!Meu Deus!-com um sorriso ela gritou-Aqui tem comida!
                     Invadiram os lixões e com suas esqueléticas mãos foram pinçando naquele tesouro os melhores pedaços.Foram mais rápidos ainda ao ouvirem passos indicando que alguém se aproximava, e tentando colocar mais e mais na camisa cujos buracos se expandiam correram.Esse alguém era um cozinheiro que furioso brandava energicamente os braços e gritava palavras nada convenientes ao ver que roubaram até lixo.
                     É...-pensava enquanto corria-o ser humano é muito egoísta...-e deixava uma trilha de sangue e sujeira.
                     Feliz ele sorria para sua mulher e olhava para ela com sangue na boca que escorria.Por sorte encontraram um buraco para se esconderem perto de uma estação abandonada de trem.O futuro agora estava nas modernas pichadas estações destruídas de metrô.Já passara dias vivendo despercebido naquele lugar infernal.Que caos aquele lugar!Muita concorrência lá havia também.Se ao menos soubesse tocar música, poderia ter uma vida melhor...mas mesmo que quisesse não conseguiria...os outros tocavam violão com a mão que ele menos tinha controle.Restava então a voz.Outro problema: tinha uma voz grossa, rouca e bem falha.Resultado: saiu daqueles intermináveis túneis criadores de seres que a cada dia pareciam mais mortos.
                     Que sede sentia.O álcool acabara há tempo.Olhando para a sedutora poça d´água quando menos esperava sua língua já alcançava o barro do fundo que turvava a poça.Sem saber o porquê, sentia-se melhor só ele e ela sozinhos naquele lugar em plena tarde tão cinza.Sempre foram vistos como nada.E por isso nunca vistos como alguém.Ali pelo menos não havia ninguém para rir, ter pena deles ou simplesmente não repararem neles.
                     Decidiram se esconder debaixo dos escombros dos trens a fim de se sentirem melhor protegidos.
                     -Aqui vai ser a nossa humilde casinha humilde-disse ele feliz desenhando um sorriso no rosto de sua mulher.
                     Ficaram lá sem nada dizer.Apenas contemplando unidos pelo abraço do outro para as distantes luzes de postes que agora acesos viam da metrópole infinita...nada diziam.Os postes acendiam esperanças no céu já morto e sem estrelas.A metrópole acolhia a todos ao mesmo tempo em que a ninguém negava o desfrutamento da civilização...por isso ali estavam.
                     Já era noite.O frio penetrava em seus ossos e tomava lugar na alma nela se refugiando.A barriga insistia em ganhar vida própria.Comida faltava...Para retardar esse processo espontâneo decidiram fechar os olhos e contarem até o infinito.Tudo foi ficando escuro até a escuridão os encobrirem...
                     Imersos em seus sonhos tão distantes, limpos e brilhantes um latido distante fez o homem acordar para a ofuscada e suja realidade.A medida que aguçava seus ouvidos o latido ficava mais audível. Um cachorro passou por ele.Parecia fugir de alguém.E atrás vinha esse alguém que parecia não estar muito em sintonia com a vida.Instintivamente ele largou a mulher e foi atrás do pobre cachorro indefeso para defendê-lo.Chegado no fim do limite da abandonada estação, grades gélidas enferrujadas separavam o cachorro da liberdade...ou vida.Quisera o cachorro ser seu inimigo mortal para ter mais vidas pelo caminho.O ser que chegava tropeçando pelo caminho estava perto.Ria e ria da maldade que estaria prestes a fazer e falava aos céus palavras incompreensíveis.O homem escondido na escuridão com suas mãos que tateavam o caminho achou algo rústico sobre algo sujo metálico e.
                     Um só golpe bastou.Porém decidiu dar mais para confirmar o já confirmado.Pedaços de madeira harmonizavam com o corpo caído.De alguma maneira o cachorro nada mais temia.Bastou olhar nos olhos do seu salvador que uma amizade se iniciou.Nos braços de seu dono era levado ao buraco em que estavam escondidos.A mulher estava acordada.
                     -Tira esse cachorro daqui!-estava muito assustada-Não temos comida nem mesmo para nós e ainda mais para mais um.Vi trinta e três caras com correntes e cruzes e pelo que ouvi vai ter uma briga de gangues aqui depois de um ritual satânico.Deve ser essa pobre alma que procuram para sacrifício.
                     Ele ficou sem palavras.Estaria ela delirando?Seria ele?
                     -Vamos agora então!-disse puxando-a pela mão e assim saíram correndo, se escondendo como ratos fugindo de gatos e pulando algumas poças que se formavam...uma tempestade se aproximava.Em uma mão a mulher e na outra o cachorro.
                     Pingos tinham seus diâmetros aumentados a medida que avançavam no jogo.Decidiram parar na primeira ponte que encontraram.Pelo menos de gripe não morreriam.
                     Sentados em papelões encharcados que pegaram pelo caminho o casal ancarava com curiosidade o filhote.
                     -Sabe...sempre desejei ter um filho...
                     Ele nada respondeu.Preferia fingir que nada ouvia pelo barulho da forte chuva.
                     Ela não queria falar...mas se sentia tão morta por dentro...e não era por causa dos efeitos das drogas que já estudara quando jovem.Já estava farta de seus sonhos serem ignorados a cada olhar desviado da sociedade.Será por causa de sua aparência?Da do seu homem?Seu orgulho a cada dia que sucedia era manchado.
                     E naquela noite não era diferente.Sabia que olhavam com pena pelos vidros ou simplesmente nem percebiam sua presença.Vai ver que era por isso que uns evitavam molhá-los e outros não.Era um ser humano!Era uma mulher!Tinha o direito de ser feliz e ser notada.Recebia de respostas apenas a água suja que penetrava em seu corpo.Tentava esconder mas pelo choro sonhos e decepções eram derramadas no asfalto molhado.
                     Desesperada olhou tudo que a envolvia até achar um cigarro escondido na grama.Estava quase no fim.Olhou de novo para confirmar o milagre e notou vários outros que não podiam ser desperdiçados.Com suas mãos trêmulas foi pegando um a um e um sorriso esboçou ao perceber que a maior parte deles estavam de certa forma secos.Agora faltava apenas um fósforo ou um isqueiro...Onde poderia achar um?Podia simplesmente procurar mo lixo ali perto, porém estava tão sem vontade que tudo parecia ser tão complexo.Parecia tudo tão distante...
                     Onde poderia.Lembrou-se do isqueiro que guardava em seu único bolso e pegou acendendo os cigarros.Lembrou-se da sua mãe...quando ainda jovem fora pega fumando pela sua pura querida mãe.Prometeu-lhe que nunca mais fumaria...até agora cumpria a promessa...até!Sua vida tomara rumos tão diferentes que se aproximavam da de sua mãe...
                     O cigarro acabou!Acendeu outro e na boca sentiu a fumaça invadir nela adentro.Devia estar mal...pois o efeito foi instantâneo.Seria o cigarro?
                     -...quem sabe você se torna um lobo, hein?Eu bem que queria ser um...
                     Seu homem agora conversava com o filhote enquanto fazia-lhe carinho.Sentiu de repente uma inveja.Há quanto tempo não recebia um carinho do seu homem?Estava carente...
                     Ele agora olhava com um dos olhos para o distante e com o outro para o filhote.Ela entregou um cigarro para ele e ambos sentados abraçados pensavam sobre o futuro de cada um a cada tragada.Assim, sem mais nem menos o homem se levantou.Estava alterado.Saiu sem dizer nada.Apenas jogou o filhote à mulher.
                     Nas ruas, todo molhado ia se equilibrando e tateando o que encontrasse pela frente.Deveria estar sofrendo os efeitos da abstinência.Visava agora apenas encontrar o seu amigo negociante para pedir por mais drogas.Achava que iria ser perdoado apesar de ter fugido sem pagar por nenhuma droga...afinal, amigos são sempre bem vindos.
                     Não conseguia achar o lugar.Parecia que andava em círculos.Achava que uma sombra o perseguia...Foi dobrando de esquina em esquina até encontrar de alguma forma o seu antigo amigo.
                     -Entre-disse conduzindo-o pelo ombro para um barraco-Já estava a sua espera.
                     A porta se fechou.
                     -Por que você sumiu assim de repente?-disse com uma voz suave.Como nada ouviu disse-Eu tive de arranjar favores-admirava o seu jeito polido de falar, embora não entendesse por completo o que seu chefe queria dizer- para pegar um dinheiro que não é meu-seu tom de voz aumentava-Vieram aqui me cobrar dinheiro!-e bateu na mesa.Você trouxe o bendito dinheiro?
                     Ele só balançou a cabeça negativamante sendo imitado.
                     -Lamento lhe dizer mas não tem outro jeito...Sombra!
                     Atrás de si pela luz um gigante foi revelado.Em um só movimento detinha total controle sobre o corpo ensopado.O chefe tirou uma faca e disse:
                     -Me mostra as mãos...Eu disse agora, seu merda!
                     -Não-n-na-não te-tem o-o-outro-tro jeito não?
                     -Não.
                     Um grito foi ecoado na lunática madrugada.Foi jogado para fora do barraco.Parecia que a tempestade ficava cada vez mais forte.Errando entre esquinas fez o máximo até tombar.Lembrou-se sem saber do rosto de sua mulher.
                     -Não!Não era ela.Não pode ser...
                     Enquanto isso, sua mulher com o cachorro ficaram parados encarando a morte que se aproximava e contemplava e contemplava...até o filhote sair correndo pelo mesmo caminho do seu dono.
                     -O que me tornei, meu Deus?-dizia ela-Até um cachorro inútil como esse me ignora agora-e chorou de novo-Basta!Sou ignorada por ratos, baratas, pombos, moscas e agora um cachorro- e perdia o controle do incontrolável choro que tingia a água da chuva cuja intensidade diminuia.-O que me tornei?-não sabia responder...estava desesperada-Deus!Onde está você?-e gritou-Onde!-realmente, estava no seu limite.
                     A chuva estava em seu fim...até restava no céu apenas a majestosa Lua.O cachorro sem dono seu dono encontrou de alguma forma inexplicável.De alguma forma encontrou o caminho.Encontrou imóvel de costas com a cara enfiada em uma poça d´água que se secava.
                     Latiu para a lua prateada buscando respostas.Ouviu apenas outros uivos.Não era mais um cão que latia por seu dono, e sim um lobo que sabia que sua vida não seria mudada pelos outros.Era de sua natureza ser um frio errante solitário.
                     Há tantas palavras que não são ditas pela língua e que pelos olhos adentram na alma...para várias respostas se tem mais perguntas...pensava nisso a mulher que acordou agora sob o Sol radiante com metade da cara coberta em lama.
                     -Adeus cigarros e vida morta!Vou fazer algo inusitado de agora em diante!
                     Levantou-se por vontade própria e descalça foi adentrando nos circuitos da cidade que com o Sol era recarregada.
                     As pessoas voltavam a aparecer com as mesmas expressões de ontem, porém mais tristes mesmo que escondessem em sorrisos brancos e apertos de mãos rígidos.E ela procurava onde ficar no lugar que lhe destinavam.Curiosamente encontrou o mesmo lugar que dormia com seu homem.Por falar nisso, onde estava ele?Havia vários outros desconhecidos no local.Parecia que de uma noite para outra novos infelizes surgiram espontaneamente!Naquela multidão de desgraçados um se destacava e chamou a sua atenção.Ele estava sentado cheirando pedras colocadas carinhosamente em um cachimbo enquanto um violão jazia em seu colo.
                     A realidade era outra agora.Apenas sentou-se ao seu lado.Ele não esperava por essa.Em seguida pediu para cheirar.
                     Iria falar que também era órfã.Facilitaria a aceitação.
                     -Pode me chamar de Lobo-disse friamente.
                     Juntos então naquela multião, passaram a alimentar sonhos levados pelo vento a cada tragada como ela fazia com o seu homem que sumira e que por sinal era parecido com o rapaz do violão.
                      Ele então se pos a tocar enferrujados acordes com sua rude voz que em conjunto alegrava e coloria o dia.Sim!A música liberta!Parecia que estava drogado por outro motivo?Parecia que estavam drogados por outro motivo?O que tocava ninguém entendia...mas todos se enchiam de esperança e passavam assim a entender algo inexplicável.Uns ficavam em silêncio provavelmente revivendo em suas boas memórias enquanto outros cantavam para tentar esquecer o que só eles passavam, viviam e entendiam.                    
                      A cada dia mais mendigos surgiam...e diziam que a culpa de tudo eram os pobres que procriavam a cada dia mais bastardos a serem ignorados e custarem cada vez mais e mais ao Estado, além de aumentar a violência e outros problemas sociais.Esqueceram-se, porém que foi a metrópole mãe de todas que renegou a quem nada tinha a perder...ou não!
                      O dia dizia que ainda existia esperança...Sim!Era o que dizia a música dentro do coração de cada um.O mesmo som composto por silêncios que invadia o coração de poucos, tentava em vão invadir e era refletido sendo ignorado pela maioria esmagadora de transeuntes que a cada dia se tornava e tornavam mais como a própria mãe metrópole: agora somente ferro e cimento.
                      A esperança mantia a metrópole acesa.A mesma esperança sábia que acredita e acredita no nascimento de um novo dia, um novo amanhã e ,assim; quem sabe, uma nova possibilidade de recomeçar.
                      Os poucos tidos como mortos sabiam disso e assim se mantiam vivos em detrimento da maioria viva que ou de nada sabia, seja por tempo e ou stress, ou que apenas não queria acreditar; e assim mantiam-se mortos.
                      A jornada na metrópole prosseguia...infinitamente em ritmo com a vida...porém esta tem que algum dia parar...enquanto aquela tem que continuar...em ritmo com o infinito aflito que anseia por um ponto final.