Encontro estranho

                     Estava eu um dia caminhando por aí apenas pela sensação de presenciar a dádiva de estar vivo, de poder enxergar, cheirar, sentir, ouvir os ocultos milagres de cada dia escondido sob panos de vento quando vejo alguém cuja projeção chama minha atenção.
                     Estava andando pela calçada olhando para o infinito e as nuvens tão distantes que pareciam prenunciar que algo não ocorria bem ali até um vulto desfocar e refocalizar minha visão.Havia algo de especial naquela pessoa; apesar de andar de um modo bem inquietante, com mãos no bolso, tinha um relógio no pulso esquerdo e ocasionalmente o olhava como que se tivesse um compromisso importante, ombros largos retraídos, olhar baixo e por isso parecendo um pouco corcunda, com passos longos e apressados apesar de suas pernas favorecerem a complicada marcha indelicada que seguia, vestia uma blusa monocromática de cor fechada e fria.Já eu caminhava com um andar também longo, porém tranquilo, com a postura formando um ângulo reto sobre a calçada que me ligava a ele, me libertera das algemas de um relógio, mãos soltas, olhando para o alto, com uma blusa monocromática aberta e de cor quente.Contrastávamos de uma maneira incrível, como que um reflexo no espelho que a cada ação o reflexo faz o oposto.
                     Ele se aproximava e nesse pequeno intervalo de tempo, porém longo de espaço para ser contado em palavras em uma única frase que se estende à medida que descrevo o escrito pude notar mais detalhes: tínhamos alturas muito parecidas; idênticas, talvez iguais...e o mesmo biotipo.Éramos magros.
                     -Oi!
                     Um longo silêncio ecoou.Não pude evitar!Aquela estranha sensação de estranhos que de tanto trocarem olhares tão rápidos quanto o piscar de olhos ao ponto de se encararem e assim se verem espelhados no olho do outro querendo, pensei eu, conhecerem-se.Todo esse pouco mergulhado no muito invadiu minha consciência e ações e.Não pude conter aquela histeria que percoreu meu corpo e mente, invadindo meus sentidos; nem que fosse por um ínfimo momento...
                     -Oi...-repetiu como que desinteressado...
                     De novo o agora conhecido silêncio, porém menos intenso.Tomei de novo iniciativa:
                     -Clima estranho, não?-disse gesticulando com a camisa; o que não era mentira pois mais sobre mim do que sobre ele recaia um calor típico de Brasília; mesmo que de onde ele vinhesse estavisse nublado.Só entenderá o que reside no coração.Somado a isso não perdi o meu único costume de ser ambíguo (espero eu ter ele entendido).
                     -Estranho para o próprio que ambos totalizam três imaculando a vulgar língua portuguesa.
                     Incrível!Esse jeito dele parecia com o meu!Éramos bem parecidos nesse aspecto.
                     Fitei-o nos olhos e ele ora encarava ora fugia.Éramos, realmente, como opostos se espelhando.Queria confirmar:
                     -Seria estranho se soubesse ao lhe perguntar de onde e para onde vai?-arrisquei.
                     -E você?
                     -O quê?
                     -Esqueça...não importa.Eu não dou a mínima.Prefiro viver nas sombras...a sombra enlouquece...sabe?
                     Achei magnífico pois apesar de tudo o que ainda sou continua, continuo misterioso assim como ele.
                     -Interessante...mistério é o meu sobrenome- e nisso soltei um sorriso complementada em uma autêntica risada própria do meu modo de ser.
                     Ele riu e nisso.Vi como era belo o seu sorriso!Branco branco como a alma, talvez por isso vivia nas sombras...talvez preferisse?
                     -A sociedade...a sociedade-pensava alto enquanto ballançava a cabeça até me dar conta do meu estúpido erro.
                     -Você vai aprender a gostar.Vai ter se quiser sobreviver nessa selva de concreto, a menos que prefira ser um ermitão e passar a sua vida sozinho.Sabe...a solidão às vezes é a nossa mais autêntica e duradoura amizade.A única companhia que nos ensina mistérios que todo mundo não ensina.
                     -Não é isso- e desabafei-Sabe...é que a conversa é a pior forma de comunicação possível...
                     -Por isso você simplesmente preferi conversar com os olhos não é?
                     -Nossa!Exatamente.Parto do pressuposto que conversamos quando nada temos a dizer...
                     -Você é um tímido então?
                     -Não, um quieto que também é inquieto.
                     -E um paradoxal que metade das vezes se contradiz?-e nisso levantou as sobrancelhas.
                     -Depende- caí no meu próprio erro mais uma vez-Por que a pressa?-perguntei ao notar que de novo ele olhava o relógio.
                     -É porque o relógio é o que somos: a cada segundo mudamos, envelhecemos e nos aproximamos da inevitável morte.
                     -Besteira-e ri- esse negócio de ser prisoneiro do tempo só impede que vivamos o presente, e que até não nos conheçamos melhor...
                     -Não concordo.É o capitalismo que manda mesmo.
                     -Siga o compasso do caração.O coração é quem manda, ademais, a pontualidade sempre nos rouba tempo.
                     -Talvez...talvez esteja só sedentário, atrasado pelas amarras do passado...-e fez uma cara pensativa.
                     -É casado?-rapidamente tentei mudar de assunto e ouvi a estupidez que acabei de cometer-Quer dizer...
                     -Sim.Por quê?Tenho meus mistérios.Não gosto da ideia de carregar um amor vazio e uma mulher cheia no dedo- e olhou-me ironicamente, como que provocando-me.
                     Sem motivo, preferi apenas não falar do meu estado; somado ao fato de ele não ter perguntado.Tínhamos, de fato, muito em comum com o pouco que conversamos; o que é bem fácil de ocorrer com estranhos e difícil com conhecidos que nunca conheceremos.É...se analisado às escuras tínhamos muito em comum além do fato de agora nos conhecermos, apesar de não nos reconhecermos ou melhor, não mais nos reconhecermos.
                     Afinal, era meio dia.Pelo menos eu estava com fome e deduzia por analogia que o mesmo ocorria com ele.
                     A barriga dele roncou e nisso ambos sorrimos, eu pela dedução; ele, pelo embaraço causado.
                     -Bem, já roubei muito do seu tempo-disse agora na minha vez meio sem jeito.-Seu nome é?
                     -Victor.E o seu?
                     -Que coincidência!Somos xarás!-e pensei até-Não nos já conhecemos?
                     Ele pensou até-Nossa!Há quanto tempo!Desculpe, não te conhecia.Você me conhece?Ou me reconhece?
                     -Não mais...mas como assim?-pensei de novo alto.
                      -É canhoto?-perguntou-me mudando de assunto.
                     -Como você sabe?-e ele com os olhos apontou na minha mão manchada de tinta-Logo...só um canhoto para reconhecer outro.
                     -Estamos em extinção...minha intuição diz que essa tinta veio das manchas de sua mente jorradas pelo agora sujo sangue que limpou sua consciência e quem sabe até a alma.
                     -Você também escreve, então...
                     -Escrevia...depois que você descobre que o mundo das palavras é ínfimo se comparado a linguagem da vida você simplesmente perde o interesse por tudo que se interessava, e escrever era um prazer que não mais sinto...
                     -É, já comprovei isso quando passei por um momento semelhante.Mas a graça está nisso: com o pouco de limitado que temos podemos preencher o que não é e não somos.O tudo está no tudo...
                     -E o vazio está incluso...
                     -Exato!                      -Dirige?- foi bem direto.
                     -Quer carona?-e de novo ri-Você é bem direto e mais que isso: é monossilábico.
                     -Sim...-e ao ver que não responderia-Você está me convidando para entrar na sua vida?
                     -Não.Não foi isso que quis dizer.Apenas quis ser gentil pela sua pergunta que para mim pareceu muito intencional...
                     -Esqueça então!-engoliu em seco e passou as mãos no rosto-Não posso.Entenda, será melhor para nós dois, sabe, eu simplesmente poderia te contar segredos que você mesmo desconhece...
                     -Eu sei os meus segredos- disse rispidamente.
                     -E os que você terá?Você sabe estes?
                     -Só Deus sabe.E não!O meu caminho eu mesmo faço; você, eu...quem quer que seja também.Tchau, prazer em te conhecer- estendi a mão mas o outro apenas se despediu monossilabicamente e saiu apressado depois de um breve aceno de cabeça de um modo bem silencioso...e misterioso.Que segredos aquele
                     Sujeitinho esquisito, pensava.Fiquei parado por um momento na calçada.Pensei em virar para ele e perguntar se ele era narcisista.Quem sabe?Ele parece, pelo menos foi o que tinha percebido em suas ações.Um narcisista depressivo?E ri em silêncio.Não...talvez seja apenas alguém que cuida de si mesmo e está se procurando.Pelo menos já me encontrei.Meu melhor amigo sou eu.A pessoa que mais me importo e se importa comigo é eu, sou eu.Já fazia um tempo que nem mais lembrava disso...mas agora que encontrei no exterior o que tenho de mais precioso em mim é mais sábio apenas esquecer o passado para reencontrar a felicidade.
                     Preferi não olhar para trás e, acredito, que ele tenha feito o mesmo.
                     Então elimino os pensamentos que me afogavam em imaginação e no tempo até me dar conta que a antes vazia calçada estava agora tumultuada de vários outros eus.Um sem óculos esbarrou em mim, enquanto outro de certa forma forte pedia licença até ouvir um falando com outro:
                     -Desculpe!Tinha me esquecido que éramos melhores amigos...é o tempo...o tempo que muda e nos transforma também com o vento com quem conversamos silenciosamente.
                     -Só eu tinha reconhecido você?- o outro falou.
                     -Calma aí.Apenas não reconheci você, eu mesmo mudei muito.Se me visse como era ontem, eu próprio não me reconheceria- e riu.
                     Pude perceber que um deles era destro, pois anotava algo em um caderno usando a mão direita.Sim, é uma mania que um canhoto tem; e espero que todo sinistro tenha...isso nos torna próprios e sinistros para os outros.Espero que o outro seja canhoto.
                     -Sei...-disse desinteressado o outro, enquanto anotava ao mesmo tempo em que andava apressado.
                     Afinal, era meio dia.Estava faminto.Sem saber o porquê, lembrei-me apenas de uma frase que subitamente veio à minha cabeça: "...e o que você será o que sou o que não mais."
                     -Trabalho, tempo, família, compromissos e a vida se esvai no dia de cada dia...- ouvi de um velho falando com outro que respondeu:
                     -É a vida...encontre a sua rima e seja a eufonia...descubrirá que a vida é bela.
                     Estava.