A casa

I
Um homem construiu uma casa.Uma ideia o habitara e dos sulcos do cérebro nano um arquétipo moldou e lá habitou.
A casa era de vidro para que todos pudessem vê-lo e reconhecer seu último trabalho, considerado pelo mesmo como uma obra atemporal.
Nas visitas e vistas, alguns saíam novos, estranhos à transparência inerente de todo o sistema e a si próprios.Pareciam sentir a si próprios.Alguns outros...
Paredes e janelas se confundiam e o homem parecia levitar.Criaram-se templos e ridicularizações em sua homenagem.Era ao mesmo tempo um deus e uma besta.
Depositavam, enquanto dormia, manequins de plástico; enquanto defecava, manequins de madeira.
Estava conhecido.Sua obra absorvia seu conhecimento metafísico.Sua vida ia se esvaziando nas quinas invisíveis.

II
Um homem construiu uma casa.A realidade fugiu de seu ser e para algum lugar encontrou um lar.
A casa era de espelhos para que pudesse se encontrar e reconhecer algum sentido.
De sua janela via o sol revelar manequins dormindo ou tentando em vão entender...
Paredes e janelas se confundiam e o ser ficou esquecido.Era tido como um vizinho e um desconhecido.

III
A ruptura acontecia ao nascer do dia.O ser se encontrava sempre em um canto diferente do cômodo em que dormia.Suas feições mudavam e isso o preocupava.Parecia estar contaminado pelo bem estar da civilização.
Sua casa imponente perante o mundo como uma lente a todos observava e uniformizava comportamentos e pensamentos.
O simples nascer de um novo igual ser era planejado pelos vários eus que trabalhavam, dormiam, defecavam e comiam.Os outros pereciam e pareciam conformados com a situação.

IV
"Lembro-me do dia em que finalizei a casa.Senti com um detalhe miraculoso a resolução de minhas mãos.Vi-as, então, moldarem-se numa superfície plasmática que me afogou."
Enquanto um encarava o outro do outro cômodo, um tentava encontrar o seu pedaço que não encontrava na janela.
À noite, tudo morria sem reflexos.
(escrita indecifrável)
"Parecia não sair de mim.Tinha medo e desejo pela dor.O egoísmo parecia ter entrado pela porta e como providência derreti a porta.(parte sem sentido)Que sensação é essa de estar sendo vigiado por esses manequins?A cada dia que acordo descubro existir sempre mais algum ou em posições diferentes.Por sinal, que ano é hoje?Talvez seja melhor derreter as janelas restantes.Percebi que lançaram novos modelos de borboletas.Talvez o mal do câncer foi substituído pela moda dos suicídios:única razão para viver e de acabar com a vida naturalmente...está tudo estranho..."

V
Todos somos perfeitos na superfície.A casa era uma torre intersecta que parecia castigar a todos.
Um momento acordou e reparou faces gritando, corpos deformados e espelhos vazios com bolhas que os contaminavam numa agonia cheia de harmonia.Demorou para perceber que era a sua casa em chamas.Olhava para as confusões e só via saídas infinitas.Seus mundos se extinguiam e o ser se via morrendo e queimando mais algumas vezes e sofrendo.
O homem metafísico, antes de perecer encontrou o sol verdadeiro romper com a parede de concreto.Na sorte, escolheu uma fresta.Pulou e lá ainda estava ele: era areia levada pelo vento livre que o conduziu ao reflexo de uma poça que surgiu perto das cinzas.A cidade queimava numa inconsequente quimera e ele se viu preso em seu novo lar: seria lama.
...Tudo era a casa.Todas as escritas, democracias, ideias, direitos, letras, espaços etc etc.
A obra sucumbiu naquele espaço vidro/espelho, mas persistia como um vírus no tempo, assim como o seu criador e suas repetições.A verdadeira história talvez esteja dentro de outra casa e outra configuração.Quem sabe tudo não passará de um sonho para outro?