A catedral

Prólogo:
O que se segue é obra da cabeça, local onde ocorrem os maiores crimes...ou suas tentativas...


Furtando flores

                   Era noite.Estava mal.Aquela mania de furtar flores estava me tirando o sono.Pouco importava se era de dia ou de noite, se era dia ou noite.A adrenalina acabara.E enquanto furtava na penumbra da noite rosas sinto uma protuberância de textura diferente.Era algo frio.Esqueço as minhas flores prediletas e me volto ao objeto que reluzia ao abrir caminho entre folhas e flores.Era um anel de ouro preso a um dedo anelar.Uma aliança.Com curiosidade e em indagações resolvo escavar até encontrar outros dedos, uma mão, um braço...um tronco...um corpo!Porém estava sem cabeça.O medo me dominava.O instinto de sobrevivência dominava e me domava o animal adormecido em mim.Estava diante de uma cena do crime!Eis que me furo com um dos espinhos de uma rosa.Era terror que percorria meu sangue.Não tinha culpa.Sangue escorre e colore o úmido chão e por coincidência parte da aliança.Olho para a catedral imperiosa envolta na repleta escuridão imersa no temível silêncio.Estava tudo fechado.Estava tudo muito calmo para estar assim.
                   Por fora das grades mendigos e prostitutas passavam e passavam, alguns ficando ali deitados para sempre.Seria uma prostituta que estava ali deitada perante sua pessoa?Mendiga?O corpo estava nu.E se fosse, por que alguém se daria ao trabalho de esconder algo já coisificado que vivia escondido na exposição da humilhação?Tentou analisar o corpo mas de nada adiantou.Se não fosse a cabeça desaparecida o corpo parecia com um que dormia...Estaria calma?A resposta estava na cabeça.Riu de uma maneira nervosa.O corpo não trazia sinais de violência.De maneira assustada, olhou para todos os lados ao mesmo tempo em que pensava não querer ser vigiado.Queria se sentir vigiado.Tudo estava calmo demais para ser acidental, para ser um crime.O medo era tanto que talvez até projetasse possíveis paranoias.O engraçado, assim como preferia pensar, é que como já tinha pulado o muro que separava a catedral do exterior, o resto, ninguém poderia ver sua pessoa ali.Isso era reconfortante e fazia rir dos problemas que criamos quando não há a não ser nossas problemáticas cabeças que só criam problemas...e nós criamos.Resolve pular as grades que separavam o jardim da parte cimentada que iniciava a catedral.Pula e anda fugindo de suas emoções, fingindo ser um ser novo.O chão, ou seja, paralelepípedos aglutinados estavam úmidos e entre alguns poços surgiam.Parou para olhar sob a luz da lua cheia.Era estranho o reflexo que julgava não parecer com quem recordava ser há algum tempo.

Aparições

                   Um miado evoca um gato preto que passava por entre as grades e corria pelo chão de pedra rumando ao muro.Do que o gato fugia?Seria um cão que não se revelava?Talvez também seria preto?O gato pula o muro e some.
                   Esquece o poço ao pisar e se aproxima da gigantesca catedral cuja uma das torres parecia encontrar o céu e que parecia querer convocar o ser ínfimo que se aproximava.Suas janelas nada revelavam.Ao mesmo tempo em que parecia ser livre, leve, parecia ser também claustrofóbico e pesado.Só uma luz aparecia na torre mais alta.Talvez fosse só uma estrela...

Infância memoriada

                   Vai à grande porta.Devia estar fechada.E estava.Vai pela conhecida portas dos fundos secreta que descobrira quando ainda era uma inocente criança.Memórias que temia esquecer reaparecem.
                   Era um dia quente e seu pai adotivo rezava ao morto que conhecera.Dava como amigo suas últimas palavras e lembranças a serem enterradas e esquecidas.Chove.E na chuva suas lágrimas salgavam a doce chuva.Corre em busca de algum caminho sem saber que o seu caminho era o caminho a ser percorrido.Assim ensinara o seu pai.Descobre que a construção abandonada que seu pai expressamente proibia era um lugar que era habitado.Era uma verdadeira cabana.Muitos instrumentos de tortura limpos e uma porta levava aos subterrâneos da catedral.Muitas celas fétidas iluminadas por tochas.A maioria com traços traçados.Algumas ainda com sangue.Outras com excrementose outras secreções que não conseguia identificar.Mais sangue nas paredes e marcas no chão, teto...em todo o lugar.Entre tantas salas não trancadas na última encontra degraus em espiral que pareciam infinitas que conduziam a uma espécie de parede com buracos que não fossem os já preenchidos por cimento de forma bruta e outros de forma certa forma talentosa revelavam ossadas.Alguns, inclusive estavam quebrados com pedaços do reboco no chão.
                   Um balde continha uma solução já solidificada, e por que não cristalizada de cimento e ossos.Descobre que a frágil parede era revestida de ossos.Ficou ali chorando até sua pessoa ser encontrada.Não se lembrava mais de nada a não ser de toda aquela intermediação ser assolada por uma praga que despovoou grande porção do vilarejo.A catedral sucumbia aos poucos pelo tempo.
                   O cemitério externo fora enterrado pelo mato indomável e quem sabe como forma de protesto.Alguns, por mais estranho que possa parecer davam macieiras.Mesmo o clima não sendo favorável a qualquer tipo de vida milagres aconteciam.Poeira turvava o céu com seu sopro que percorria toda extenção da alma.Todas aquelas pessoas vindas de uma vida difícil...pele seca como o chão que revolvera os estimáveis cavalos, gados, vacas, cabritos...não mais estimáveis.
                   Não conhecia mais os que não mais lhe reconheciam.Estavam mortos.Por sua vez não se reconhecia.Tudo mudara com exceção do lugar que reluzia aura que parecia vencer a condenação do tempo.Alguém devia habitar e conservar aquele lugar.

O trítono proibido

                   Rústicos blocos de madeira serviam de matéria prima para cadeiras, mesas, genuflexórios e pecados pelo suor sagrado derramado em buracos atravessados entre sursurros e silêncios de quem ouvia confissões e clamava por paciência na dúvida de que o que pedia tornaria mais divino ou humano.Estátuas de mármore, granito e até ouro resplandeciam o cuspe do povo que dava e deu a sua vida.
                   A cruz mantia-se intacta como a salvação entre dois mundos extremados unidos pelo messias ali reproduzido estancados em suas duas mãos; e nos pés o único buraco aberto mostrava o que poderia ser a humildade ou o sofrimento eterno.Tapetes vermelhos contrastavam como que lutando com o azul do ambiente que parecia ganhar vida.O órgão ainda estava como de costume.Como fora deixado.Como sempre.Tentou tocar uma nota e em seguida um acorde mas o resultado foi muito díssono.Executa o trítono proibido que revela a passagem que já sabia dar à torre.

A passagem 322

                   A passagem possuia muitos deuses e formas geométricas simplificadas beirando o suprematismo intencional, sendo o triângulo majoritário.Muitos sóis.Esculturas que lembravam seres inumanos.À medida que subia sentia-se familiarizado com o ambiente já familiar que seu pai introduzira.
                   Depois de imaginados trezentos e trinta e três degraus a porta revela-se.

A maldição

                   Abre o quente trinco e um esqueleto humano com um crânio de um bode dentro de um pentagrama escrito em sangue que sabia ser de seu pai ganha destaque.Exatos seis hexagramas rodeavam as paredes circulares.Pega uns livros empoeirados na estante depois de tirar uns bonecos vodus, acende umas velas, medita com um capuz, reza sem e ao ver que a noite estava em seu fim prenunciado pela aurora boreal que anunciava o fim de noites ininterruptas de escuridões põe-se a escrever com cuidado já que com a mão dominante o risco de borrar tudo era enorme: partes com tinta e outras de seu próprio sangue com uma pena de coruja.

O voo da morte

                   Vai para a pequena varanda contemplar seus últimos momentos e se joga.O voo da morte.Um corvo e um outro pássaro; não se sabe o qual: falcão, gavião, pomba...testemunham o seu fim.
                   Seu corpo imóvel cai perto de uma estátua toda branca que moldava Ave Maria.
                   Cai sem um grito, sem um gemido.Só o estalo de como vidros quebrando é ecooado.Parte do sangue exaltado molhou o rosto e parecia fazer o caminho contrário de lágrimas de sangue que encontravam os olhos de cimento.
                   Alguém surge da última sombra e recolhe os manuscritos.Continha ordens?

Visões

                   A catedral iria ruir pela tempestade de sal que viria.O joio seria separado do trigo.
                   Alguém...

Queima de arquivo

                   O vilarejo nunca mais será o mesmo.Fogo se alastra da torre mais alta a outras até dominar toda a cateral.
                   Purificação em cheiro de carne queimada.Sombras mortas demarcam o que sobrou de matéria da catedral agora um monte de ruínas.
                   O que sobrara de legado do criador daquela catedral acabava com o surgimento do possível corpo por quem foi adotado.A herança foi o escárnio.Repentino criador que surgira da única estrada que dava àquele vilarejo...e àquela catedral.Pelas tripas do pescoço uma cobra sem cabeça saia.
                   A catedral ruiu pela tempestade de sal que veio.O joio foi separado do trigo pela aparecida propositalmente cabeça de cobra de língua dividida em três encontrada.A extinção estava próxima.O contágio era inevitável.O terror mais que nunca habitava o dia.O fogo despertava desejo e vingança confundida em justiça no coração que sumia.
                   O fato é que o corpo foi encontrado sem cabeça e todo sem pele.Irreconhecível.Ao redor do corpo tudo resumia-se a cinzas, exceto o corpo que não sofrera combustão.A aliança fora arrancada junto com o dedo.O corpo da confirmada prostituta é também encontrado mutilado com o crânio do pai que mudara o destino do vilarejo após seu sumiço repentino após alguém sobre falso testemunho acusá-lo de assassinar mulheres.A aliança manchada pelo sangue agora é levada e por isso não tida como desaparecida.
                   Era meio dia.A população sobrevivente acorda com a luz que emana das ruínas purgadas das trevas que ali se escondiam e nutriam.O último rebanho se torna o primeiro.Liberdade.
                   Nos destroços do esquecimento a esperança é encontrada na simples cruz que permanece intacta e é reerguida como o símbolo de uma nova era.O milagre acontece.

Alguém

                   Cavaleiros viriam na tempestade, novos ou velhos negociarem as mesmas ou diferentes almas.O isolamento da catedral era absoluto.

Lux et solutio

                   A vida é curta.Curta.Morri.É o que os meus sentidos indicam e comunicam a mente de meu ser.Eu, parada diante de mim mesma sem sentir nada me via estirada no chão.Meus sentidos me revelavam pessoas e pessoas aterrorizadas se aproximando e afastando a cabeça, corpo e sentido ao verem que minha cabeça não era verdadeira.Era a da prostitura costurada.Estava tudo tão calmo.Era tudo paz.E na multidão encontrei o amor da minha vida, quer dizer, agora o amor da minha morte que julgava ter matado.O ser era perfeito para o que era.Éramos um casal.Éramos.A polícia afastava pessoas de mim e de si mesmos.O meu reconhecido policial não queria me reconhecer e negava e negava desejando nunca ter me conhecido.
                   A noite foi engolida pelo dia que mostrava a verdade despida.A polícia encontra o corpo da prostituta mutilado com traços que marcavam os meus dias vividos.A minha cabeça estava desaparecida.Estava e era paz.
                   O crime ainda hoje não solucionado é contado no cemitério dos vivos.Tudo era guardado pelo vazio.Cada um seguia o seu rumo que acabaria no mesmo...
                   Fui estuprada pelo meu pai, guardião da igreja e sua religião.Vinguei-me matando-o e me apaixonando pela arte de matar.Fui dominada pelo vício de matar que matava a cada assassinato.Matei conhecidos e forasteiros assim como ele e provavelmente seus ancestrais faziam com aquele vilarejo.Tempos depois meu marido cometeria suicídio ao investigar meu corpo e associar a meu inexistente ser material que naqueles tempos ultimamente sumia nas noites e voltava de um jeito estranho.É que havia matada a minha amante...até vê-la na multidão associando o meu ser disforme ali estendido de maneira idêntica a de meu marido.Estava perturbada como sempre fora, só que então estava fora de controle.Amar é impossível...

Inquérito policial

                   Só sei que conheço a loucura que me ronda e me domina.Só sei o que não mais sei.Não quero recordar todos esses anos de morte vividos recordados enquanto minha mão que pulsa escreve.Meu cérebro está corrompido pela ideia que me doma.Sou animal.Nunca bati em você.Você foi uma mulher incrível até ver seu corpo vestido em verdade.Sim!Coloquei o primeiro vestido de todas as cores que você me pedira e que com isso começamos o nosso namoro.Você foi a mulher incrível até não te conhecer.Ainda bem que não tivemos filho.Perpetuar a desgraça de sua família que agora mais do que nunca suspeito.Seus seios sumiram.Dizem que um cão preto os arrancou...
                   Devo ir, meu ódio.Minha hora me chama para a eternidade.A tinta acaba...
                   Nada é o que parece, (caro leitor). O mundo é rotacionado por mal-entendidos e a translação é relativa.(O meu pulso não é meu, ele escreve o que não penso.O mesmo pulso que irei matar.)
                   Do investigador que nada investigou ao delegado ou escrivão que vai dar na mesma presedido deste amaldiçoado vilarejo, o ponto final.
              
                   O inquérito é encontrado com pedaços do cérebro do falecido marido.

               
Epílogo:
A maior testemunha é a que tenta esquecer o fato.O esquecimento, por vezes, é desejado como dádiva.