A interseção

I

                   Tudo começou como um sonho.Ao abrir os olhos estava tudo muito claro.Levou um certo tempo para os olhos se acostumarem.
                   Estava tudo abandonado!Só posso estar sonhando, pensou.Fechou os olhos e desejou acordar.Abriu os olhos e nada.Era um pesadelo.Onde estava todo mundo?Por que estava só?Gritou mas só ecos recebeu como resposta.
                    -Sim, estou só...
                   Ao olhar detalhadamente o seu redor viu que tudo era tão imperfeito de perto que lembrava levemente um sonho.Era tudo tão desfocado e disforme...Caminhando começou a sentir medo.Alguém estava em seu alcance.Gritou e mais uma vez nada.Com mais medo ainda correu.Foi tudo ficando nublado e parecendo converger a um só caminho...até que uma casa se revela.Parecia estar situada no meio do nada.O solo em que pisava era todo rachado.Era uma casinha rústica já caindo aos pedaços pela ação desgastante do tempo.O telhado estava se soltando e dava para ouvir e ver algo balançando pelo vento.Devia ser aqueles galos de metal que indicam a direção do vento e se vai chover.Devia estar todo enferrujado.Dava para ver no fundo o que parecia ser um moinho gigante por meio de uma luz que chegava a seus olhos.Parecia vir de um quarto situado no andar de cima e para seu espanto pensava ver alguém, pois uma sombra era projetada.Porém à medida que se aproximava a luz ficava mais fraca até que sumiu por completa.
                   Enquanto se aproximava sentia um vento revigorante e ao mesmo tempo temeroso com os seus gemidos que parecia reproduzir o mal que sua mente sofria.Passou em seu redor aquela espécie de poeira acumulada em forma de novelo típico dos filmes de faroste que vira quando criança.Na varanda uma cadeira de balanço sozinha balançava pela ação do vento.
                   -Olá?-falou-Tem alguém aí?-e só ouviu silêncio.
                   -Tem alguém aí?-gritou e de novo nada ouviu.
                   Com aquele silêncio gritante resolveu subir os degraus que levavam à varanda e à porta que por acaso se encontrava entreaberta, como se estivesse chamando a sombra que já entrara na casa.Ficou alguns segundos infinitos refletindo se entraria ou não pois a vontade de encontrar alguém era justamente o seu maior medo e desejo.Riu de tão crítica a situação em que se encontrava.Estou livre mas também preso à escolha, pensou.Estava com medo do que iria ver naquela misteriosa casa, e com a ajuda do conselho do vento que soprava em seu ouvidoo reconfortantes gemidos de dor...entrou.
                   O ambiente era outro.De alguma forma lembrava a casa de seus pais.Sentia o cheiro das comidas que tanto gostava, viu a televisão que passava as habituais notícias e nisso chegou a reconhecer alguns móveis.Alguns tinham sido mudados pois não se recordava.Viu também uma xícara de café que estava quente pelo vapor que saía e pelo formato do sofá vermelho viu que há pouco alguém sentara ali.Subiu então as escadas e foi a seu quarto.Era lá que tinha visto o vulto.De um jeito ou de outro mesmo sem ver e ouvir seus pais, só o fato de estar tudo iluminado lhe dava coragem para seguir adiante.Que vontade de ficar ali pra sempre, pensava.Mas o compromisso com a verdade era maior.Tentou abrir a porta, mas estava trancada.Sem pensar duas vezes com um chute arrombou a porta.Não tinha ninguém.As janelas estavam abertas e aquele habitual vento frio entrou balançando as cortinas.
                   Esse acontecimento porém levou-me a um dos acontecimentos mais assustadores vividos até então, porque ao fechar as janelas e quem sabe deitar na aconchegante cama que parecia me convidar para nela sonhar, vi sem querer o meu reflexo no espelho e pasmem... eu me vi como alguém que vê outra pessoa de costas.Eu via a minha nuca pelo reflexo do espelho!Nisso senti de novo a impressão que há tanto tempo tentava esconder e agindo por instinto saí o mais rápido possível do meu quarto.Via tudo desfocado até que senti uma atração em meu corpo de um jeito diefrente e nada mais vi.
                   Ao recuperar a consciência, vi que estava no chão da sala.Tinha tropeçado na escada e desmaiado.A minha testa que chorava sangue mostrava isso.Tinha a impressão de ter um outro olho que nascia por onde escorria o sangue.O olho tinha vida própria!E de alguma forma eu enxergava por meio desse olho!Estava tudo em negativo e vi um piano nunca lembrado que de repente começou a tocar sozinho.Ouvia também um barulho quase indistiguível de uma sirene de emergência.Estava tudo tão deserto de novo...Tentei chorar e não conseguia, até que na televisão apareceu as habituais notícias; porém esta me espantou.Um apresentador de olhos censurados com uma voz eletrônica dizia que um tornado se aproximava e nisso apareceu na tela aquelas cores psicodélicas.Nisso senti o chão tremer e ao olhar pela janela que antes estava fechada via o tornado!Um tornado diferente...cheio de luzes que me instigavam a associar com almas!Logo eu que nunca tinha visto uma para acreditar.Saí da casa correndo o mais rápido que podia e de alguma parecia repelir o tornado.Parecia que o alvo dele era apenas a casa!Apenas!Correndo e pensando apenas em me salvar, atrevi a não olhar para trás e pelo barulho supus que a casa foi desintegrada.Após isso o silêncio reinou no reino da neblina.
                   Andando desolado vi que algo brilhava.Exausto após tanto correr preferi ir andando...Era um espelho.E dentro dele via fortunas: ouro, diamantes, cédulas...nisso os espelhos se multiplicaram impedindo a minha visão para todos os lados.Estava preso!Nesse meio tempo o olho me conduziu para dentro de um dos espelhos.Iria ser jogado lá dentro caso como um milagre o meu instinto de família dominou o meu sangue de uma forma nunca antes vista e cabeceei um dos espelhos.O impacto se espalhou por toda a estrutura e quebrou todo o cubo que me aprisionava, revelando uma luz que me deixou cego.Minha testa se regenerava ao mesmo tempo em que ardia.

II

                   Estava de novo no nada.Passei a mão na testa e o olho tinha desaparecido.Foi a primeira coisa boa que me tinha acontecido.Estava curado!Sorri.Pelo menos alguma coisa boa tinha me acometido e pude ver então duas retas que se cruzavam no infinito.Foi tudo ficando definido e me vi defronte a um plano inclinado cheio de pixels.Peguei um e joguei para ver o que acontecia.Ouviu-se um eco seguido de vários outros com barulhos semelhantes a de pedras que caiam de uma ladeira de terra.
                   Estranho...isso me lembra e de repente o lugar que imaginava apareceu.Era um declive de uma montanha cheio de pedras cortantes cuja queda levava à nascente de um rio.Ao olhar para a imensidão pensei que provavelmente morreria se ali descesse e fiquei pensando sobre o que fazer até que apareceu um ser alto, magro, de pele clara com uma roupa e capuz todo preto, cuja presença me assustou.
                   -Que és que procura?- disse seriamente.
                   -Ainda assustado saiu de minha boca apenas-O-o-o-o res-resto-ao ver os seus pretos olhos sem vida.
                   -Que resto?
                   -O resto que carega parte da minha existência.
                   -Não percebes que és de fato um reflexo deles?-e apontou para uma poça de aguá que não tinha visto.
                   Só conseguia me ver pelo reflexo!-Você não é refletido!Quem é você?-estava com muito medo.
                   -Não percebe que mesmo perdendo uma parte tão ínfima e virtual o resto ainda é o todo?-ignorando a minha pergunta.
                   De alguma forma aquilo me confortou e me acalmou.
                   -E aquilo?-apontava para o pico da montanha que era ofuscado por uma poderosa luz.
                   -A salvação-replicou de um modo desinteressado o ser.
                   -Você não pode me levar até lá?-disse cheio de esperança.
                   -Não.
                   -E o que há lá?-maldita esperança que tarda a sumir...
                   -Não sei e não quero saber-e apoiou sua esquelética cabeça na longa mão.
                   -Por que?
                   -Porque o conhecimento em excesso mata e além disso-abriu um sorriso-eu me sinto muito bem do jeito que sou e olha só-bateu no meu ombro-você tem uma amizade-e riu de um jeito meio sarcástico.
                   Triste, olhei para baixo e vi um buraco.
                   -Que é isso?
                   -Onde jaz a humanidade.
                   -Dentro de um buraco?-disse sem esperança.
                   -Não, num fundo sem fim- e riu.
                   -Mas se lá estão os homens em que mundo estou?-repliquei.
                   -No nosso.Meu e seu.
                   -E o rio?-apontando para o rio distante-Para onde vai?
                   -É o local proibido...
                   -Para você suponho-cortando a sua fala e ri.
                   -Para nós!- e riu mais alto.
                   Nisso eu vi um aparato tecnológico no chão.
                   -Não pegue isto!-alertou-me-É para o seu prórpio bem.É meu conselho.
                   Ignorei o ser e peguei.Ao analisar minuciosamente o objeto vi que se encaixava perfeitamente no lugar que ficava o meu coração.
                   -Onde estou?
                   -No seu mundo.
                   -Em um mundo sem coração?
                   -Um pouco mais disso e tudo mais-e riu tão alto dessa vez.
                   Meu corpo balançou derrubando o aparato no terreno.Partiu-se.De um bando de metal fundido sairam um conjunto verde de 0 e 1, memórias azuladas e sangue vermelho.
                   -Parabéns-e bateu palmas-Pensei que não completaria o quebra cabeça.
                   -Que quebra cabeça?
                   -Desculpe-me.Ainda falta uma peça.Essa foi a penúltima- e vendo que não entendi disse-o início de tudo, sabe...vermelho, verde e azul...entendeu?
                   -Onde estou?- perguntei de novo com medo.
                   -No mundo- e nisso tudo se resumiu na indestrutível tríades de cores: branco para a luz, preto para o fim e vermelho para a espécie humana.Vi-me então com a cabeça toda deformada deitado sem vida na pista cercado de curiosos sem expressão.
                   -Tenho que ir-disse olhando para o relógio que trazia no bolso-Adeus.
                   Um panfleto digital gigante desses que fazem propaganda ou de salvação pela igreja ou de seguro de vida...posso dizer que manchei tudo após sentir em minha cabeça todo o peso da realidade agora já virtual.
                   Tentei procurar a morte.Não conseguia achar.Tinha ido embora.
                   Pensei...e pensei...até!
                   -Achei a solução-e bati o pulso esquerdo fechado na palma da mão direita-Cabeça quebrada é igual a quebra cabeça!Eu sou a última peça!-gritava feliz-Agora...tudo se resume a apenas isso?-a tristeza me abalou de novo.
                   Fui retribuído apenas por uma risada já distante.